sexta-feira, agosto 31

Despedida

Vou abrir a porta da casa. Hesito, transtornado, a respiração a falhar, cortada pela certeza de que será a última vez.
A partir deste momento o passado vai-se esfumar, as recordações perderão a moldura que as tornava reais, nunca mais poderei apontar onde nos sentávamos à mesa, o lugar das camas, o da escrivaninha, a lareira, os buracos na parede da cozinha onde se espetavam as varas com o fumeiro.
Restarão algumas histórias soltas, a do avô que a construiu, a dos que na sua singeleza a julgavam um palácio, dos que aqui viveram e sofreram, dos terríveis anos em que minha mãe se enterrou viva na sua solidão.
Guardarei também a lembrança dalgumas alegrias. Poucas e singelas, mas genuínas, os momentos de desafogo, quando as ameaças do mundo e do viver pareciam suspensas.
As imagens que me pertencem surgem confusas, em turbilhão, são as duma vida inteira. Vejo-me defronte da mesma porta, mas noutros momentos e noutras idades, ora feliz, mas também desesperado do mundo e de mim próprio.
A chave roda na fechadura com um som diferente e empurro a porta, mas falta-me o ânimo. Forço-me a entrar. Espreito, sinto-me criança, amedronta-me o eco dos próprios passos. Além do recheio, a casa parece ter-se esvaziado de algo mais, da vida que lhe pertencia e da minha própria, tornando-se sinistra, com um relento de corpo moribundo.
Avanço a passos cautelosos, olho em redor, mas de facto tento esquecer o que vejo. Vou duma janela para a outra, e sem me dar conta saio às arrecuas, talvez a maneira inconsciente e simbólica de eliminar a recordação de que estive ali, de que fui testemunha do irremediável vazio que eu próprio causei.

quinta-feira, agosto 30

Vaidade

Para alguém como ele o espelho de nada adianta, porque o ego só lhe deixa ver a imagem que criou de si próprio.
Alto, magro, grisalho, sessentão, veste com mais cuidado que bom gosto. Camisas de seda, gravatas de seda. Os sapatos rebri­lham. Um barbeiro capaz esponta-lhe semanal­mente a cabelei­ra. Audemars Piguet com pulseira de ouro maciço. No pulso direito um amuleto mexica­no. Usa as unhas longas, cortadas em bico e, num gesto de coqueteria antiga, bate na do polegar o cigarro, que depois enfia na boquil­ha de marfim.
À sexta-feira, ao fim da tarde, visita regularmente o mesmo bar. Só bebe Laphroaig. O seu sonho secreto é de um dia vir a ser ministro, e quando fala de política vê-se-lhe nos olhos um curioso brilho.
Caminha pausada­mente de cabeça erguida e um ligeiro gingar de nádegas que, fosse ele uma anciã, passaria por sensual. Aliás, examinado em detalhe ou tomado em conjunto, todo o seu ser é feminil: a finura da pele, o olhar, os gestos, a boca franzida num esboço de sorri­so, o tom de voz, o modo como ouve, uma certa falsidade, o veneno do carácter.
- Levando em conta o meu modo de ser e as coisas que acho realmente interessantes, se tivesse de me definir - diz ele, convicto da sua objectividade - creio que no fundo sou mesmo o que se costuma chamar a man's man.

domingo, agosto 26

Tomem nota:


Carice van Houten (1976), holandesa, actriz, descendente de Sir Walter Scott e Gustav Mahler. No filme Valkyrie (2008) de Bryan Singer (The Usual Suspects, X2, Superman Returns) contracena com Tom Cruise.
(Clique para ampliar)

domingo, agosto 19

O escritor

Ganhou nome logo desde os primeiros escritos e, por razões de política, amizades e simpatias, tornou-se figura emblemática da literatura da oposição.
Pessoalmente correspondia a um certo retrato do escritor boémio, noctívago, forte nos copos, brilhante no chalacear, com relações por todo o lado.
Cada livro seu era acolhido em certos círculos como um acontecimento de importância invulgar, e embora nem o interesse do público nem as vendas correspondessem à expectativa, ao longo dos anos tornou-se personagem importante.
A franqueza manda dizer que nunca apreciei o seu estilo, nem os temas que tratava. Ao avesso da opinião corrente, tãopouco descobri nos seus livros daquelas centelhas que denunciam, senão o génio, pelo menos um grande talento. A sua prosa surgia-me corriqueira, os diálogos artificiais, os personagens anémicos, os seus símbolos de uma dolorosa simplicidade.
No correr dos anos, por intermédio de amigos comuns, encontrámo-nos duas vezes - uma terceira não conta, porque apenas trocámos um distraído “Está bom?" - não simpatizámos, e de ambas guardo recordações desagradáveis.
Não fazia dúvida que o homem era inteligente, narrava com verve, e possuía uma excepcional capacidade de se manter no centro da atenção. Mas se o interrompiam, logo o seu rosto parecia esvaziar-se do entusiasmo e, impaciente, puxava fumaças ao cigarro até reganhar a vez.
À mesa era companheiro jovial, só que o vinho e o uísque de pronto lhe faziam perder a bonomia, transformando-o num personagem intratável.
Em ambos os nossos encontros estávamos na companhia doutros, e de ambas as vezes me despedi antes do tempo, temendo que o seu modo se tornasse mais penoso do que o que já era.
Faleceu. Foi um nunca acabar de odes e panegíricos, ditirambos, coroas de louro. Como frequentemente acontece, julgando talvez que ao fazer-lhe honra partilhariam da fama, os admiradores prestaram um mau serviço ao homem e à sua obra, afirmando que com ele desaparecera “um dos maiores, senão o maior escritor do século.”

quarta-feira, agosto 15

Tempo quente

O casal conhecíamo-lo há uns meses, aquele género de pessoas educadas, com um verniz de cultura, as ideias e maneiras correntes na burguesia endinheirada. Ele era notário, ela ocupava uma posição mais honorífica que profissional num qualquer instituto que tinha a ver com arte e subsídios.
Vieram para jantar e a surpresa deu-se logo à entrada. Embora ainda sem exagero, ele deixara crescer o cabelo, usava agora uns óculo diminutos e, em vez do vestuário costumeiro - fato escuro de cheviote, camisa branca, gravata de seda - vinha de hawaiana, jeans, e umas sandálias abertas donde saíam, grossos e calejados, os dedos dos pés.
Ela, que sempre víramos de deux-pièces, lenço Hermès e tacão alto, vestia uma túnica informe, colorida, de decote fundo. Nos braços nus usava umas pulseiras aparentemente feitas de bolotas. Os brincos eram umas florzinhas. Segurava o que eu supus ser um alforge, de cânhamo grosseiro e desenhos de misteriosa geometria que, disse, comprara em Cuernavaca a um índio tlahuica. As sandálias, como as do marido, eram mexicanas e iguais às dos campesinos.
Provavelmente esperavam o nosso espanto, porque logo explicaram que só se vestiam assim nos fins-de-semana. Mas era engraçado, não era? Brincadeira inocente. Se bem que devêssemos concordar que havia muito a aprender com a juventude. Para nossa vergonha, essa seguia um caminho diferente, progressista, zombando das convenções e dos valores tradicionais, alegremente disposta a demolir o carunchoso edifício social.
Comemos em paz, se bem que vindas de tal gente as afirmações causassem um certo embaraço. Diziam aquilo a sério? Éramos nós irremediáveis botas-de-elástico?
A conversa prosseguiu no mesmo tom, mas em certo momento reparei que, pelo vinho ou confusão das ideias, o notário sorria esquisito e enredava-se na fala, deitando em redor um olho concuspicente.
A mulher, que tinha o desagradável hábito de comer e fumar em simultâneo, essa afastara a cadeira da mesa, cruzara as pernas e, queixando-se do calor, arregaçara a túnica bem acima das coxas. Voluntário ou não, a cada movimento os seios nus debruçavam-se-lhe no decote, e ela, ora os recolhia com um sorriso maroto, ora dava a impressão de que, pendurados, lhe não pertenciam.
Devido talvez a que a discordância das opiniões nos travasse o entusiasmo ou a vontade de reagir, a sobremesa passou-se num silêncio quebrado apenas pelos costumeiros resmungos de satisfação. Mas bebido o café, saboreado o primeiro golo de conhaque, o homem pareceu endireitar-se, pôs uma expressão séria e, sem mais nem menos, quis saber o que pensávamos da troca de pares.
Além de caber na assustadora concepção holandesa de que há virtude em ser-se directo, e debitar sem freio o que nos passa pela cabeça, depois das piscadelas, das alusões brejeiras, e aqueles seios que iam e vinham, a pergunta não era de todo inesperada. Mesmo assim fez-me engolir em seco, se bem que consegui sorrir e encolher os ombros, no íntimo a perguntar-me se, sem ferir susceptibilidades, seria possível conciliar a hospitalidade com a ironia.
Daquele embaraço salvou-me o hóspede que, do mesmo modo abrupto em que tinha entrado no assunto, igualmente lhe pôs fim. Não com palavras ou explicações, mas baixando os olhos e, um pouco depois, quando o seu mutismo começava a tornar-se penoso, com a observação de que o tempo andava excepcionalmente quente.

domingo, agosto 5

"Camel toe"

Ignorava que tivesse nome, e como fenómeno natural sempre o tinha achado deselegante, de certo modo até obsceno.
Por uma conversa entre duas desconhecidas, ouvida ontem numa esplanada, fiquei a saber que é moda, talvez no próximo Verão seja já tão corrente como as tatuagens e os piercings. Consegue-se avantajá-lo com injecções de Botox. Victoria Beckham, dezenas de stars e dezenas de topmodels todas o fizeram, basta vê-las de biquíni.
As desconhecidas gargalhavam, folheavam uma revista, de vez em quando repetiam o nome que, de tão bizarro, facilmente memorizei.
Em casa Google informou-me do que eu ainda não sabia sobre Camel toe.

quinta-feira, agosto 2

A obrigação da Europa para com os portugueses

Em 1984 festejaram-se os cento e vinte e cinco anos de Max Havelaar, o famoso romance de Multatuli. A revista literária holandesa De Gids solicitou então a cento e vinte e cinco autores que tratassem outros tantos dos temas que Multatuli noutra obra sua tinha abordado. Coube-me escrever sobre A obrigação da Europa para com os portugueses.
Agora que alguns sugerem que a Espanha nos anexe, e outros alvitram que talvez seja melhor entregarmo-nos antes que ela, como da outra vez, nos compre e depois nos invada, este velho texto não é achega para discussões sérias: intenta apenas aborrecer os patrioteiros e piscar o olho ao profeta Saramago.


A OBRIGAÇÃO DA EUROPA PARA COM OS PORTUGUESES [i]


Nos últimos vinte e cinco anos a história de Portugal regista, como acontecimentos mais importantes, o fim do império colonial, a queda do regime fascista e o restabelecimento da ordem democrática.
Se bem que, à primeira vista, a restauração das liberdades e dos direitos se possa considerar um benefício, os três acontecimentos citados contribuem para fortalecer no observador perspicaz a certeza de que na história dos países pobres se repetem, ampliadas, as desgraças que afligem as famílias em penúria.
A obtenção repentina de um bem pode, em ambos os casos, dar origem a desequilíbrios tais que, passada a euforia e a surpresa, se anseia com desespero o retorno dos males antigos. Vistos à distância, e comparados com os malefícios do momento presente, sempre aqueles parecem de menor porte, mais suportáveis, arrepende-se a gente da ingenuidade com que lutou contra eles.
A partir do momento em que. nos fins do século XVI, termina a grande aventura dos Descobrimentos, a história de Portugal caracteriza-se, sobretudo, pelo seu aspecto regressivo. Enquanto que a generalidade dos países progride, e alguns, mais infelizes, param, o excêntrico Portugal recua.
A Holanda acelera os estudos da biotecnologia. Na Inglaterra pode dizer-se que literalmente chovem computadores nas escolas. Os franceses já pagam com a smart card. O Lesotho e as Maldivas incrementam o turismo e a prostituição. Taiwan, Singapura, a Coreia do Sul estão na ponta do progresso industrial. A Albânia excede-se a demonstrar a viabilidade da sua ortodoxia política. O Paquistão prepara a bomba...
No meio deste concerto de nações que se mexem, avançam, ou que por teimosia ou infelicidade são obrigadas a parar, a minha pátria dá ao mundo o espectáculo extraordinário e único de um país a caminho do passado.

Tendo por fontes de receita quase exclusivas o dinheiro que lhe mandam os seus emigrantes, e os empréstimos que de má-vontade lhe vão sendo concedidos, Portugal, se fosse pessoa, já há muito teria sido condenado à falência.
Essa dependência da generosidade dos seus filhos e da paciência dos seus banqueiros, aliada às consequências de uma mentalidade que dos antigos colonizadores - fenícios, gregos, romanos, visigodos, árabes e ingleses - apenas guardou aquilo que eles lhe deixaram de pior, tem por consequência um formidável desleixo, um descalabro sem igual. A sua corrupção torna mínima a do Paraguai. A incompetência dos que o governam ultrapassa a que se atribui aos políticos nas comédias. Nas suas cidades e aldeias descobre-se uma miséria que não destoaria no Bangladesh.

Agora que na CEE[ii] se delibera sobre a maneira de permitir ao pobre Portugal sentar-se a um canto da mesa dos países ricos - não para comer com eles, evidentemente, apenas para que as migalhas que lhe derem evitem que a sua falência e morte possam vir a ser vergonhosamente repentinas - eu gostaria de recordar, e na medida do possível actualizar, uma solução radical proposta internacionalmente em fins do século XIX para resolver os males, já então crónicos, do meu país.
Claro que, como acontece com a maioria das soluções radicais, se terá de fechar os olhos a um ou outro ponto da moral vigente. Isso, porém, não será de molde a sobressaltar ninguém, habituados que estamos a que a moral, como o dinheiro e outras certezas antigas, se desgastem com o tempo.
A solução que proponho, vantajosa para todos os que nela participarem, resume-se na venda pura e simples de Portugal a um consórcio de nações ricas, evitando-se assim o espectáculo de um país que, vivendo de esmolas, só tem como futuro o espaço de tempo que a esmola lhe concede.
Evitam também as nações ricas o incómodo que causa o terem de abrir a porta ao velho fidalgo colonial que, de mão estendida, pede que lhe acudam à miséria.
Fosse menor o volume das suas dívidas, poderia pensar-se em recorrer a um desses árabes que, ricos em petróleo e ouro, discutem pouco e pagam a contado. Mas é evidente que não se pode tratar aqui de iniciativa particular, pois um país, com o seu território, os seus cidadãos, a sua história, sempre tem outra importância que a compra dum camelo num oásis.
Soluções novas, pouco correntes, levam necessariamente à utilização de métodos inéditos. É por essa razão que eu, sem possuir quaisquer outras qualificações que a de ser português e, por conseguinte, directamente interessado, me atrevo à sugestão que segue.

Em primeiro lugar devem os banqueiros e políticos estrangeiros decidir sobre o montante a pagar, o qual, recomendo, não deve exceder o valor dos débitos a solver.
Evite-se a todo o custo que quantias em líquido ou cheques descontáveis passem, mesmo por um instante, pelas mãos dos políticos, pois logo eles as farão desaparecer a caminho das contas numeradas e dos fundos secretos.
Resolvido esse preliminar, as nações compradoras mandarão construir um muro sólido ao longo da fronteira terrestre. Aqui e além, onde hoje, por exemplo, passam as principais estradas, será aberto um certo número de portões, guardados severamente por uma polícia europeia. As entradas e saídas deverão ser totalmente proibidas durante um período de, digamos, cinco anos.
Uma força naval, também europeia, poderosa e veloz, manterá do lado do mar a mesma vigilância rigorosa, não permitindo mais que a navegação de barcos de pesca a remos ou vela até à distância máxima de duas milhas da costa. Cada infracção será punida com a pena de morte. Igualmente será proibido todo e qualquer intercâmbio com Portugal, mesmo o dos rádioamadores ou dos columbófilos.
Ao cabo de cinco anos o desgaste e o desleixo, aliados à tendência nacional de ir a passos largos para o passado, ter-se-ão encarregado de destruir, ou pelo menos de danificar de modo irremediável, a maioria dos vestígios da modernidade.
O número de veículos diminuirá drasticamente. Os aviões, proibidos, aliás, de levantar voo, enferrujarão nos aeroportos. Dos comboios só funcionarão aqueles cuja solidez resiste ao tempo e à incúria, tais como os que ainda hoje fazem a linha do Sabor, com locomotivas de 1904[iii] e carruagens do mesmo ano.
A fome, o desespero, a doença, a tristeza e a velhice, que nas circunstâncias actuais são causas de morte lenta, verão aumentada a sua eficácia, e a população, que anda agora pelos nove milhões, cairá para três ou quatro.
A inexistência de adubos, aliada à falta de máquinas, fará retrogradar a lavoura a um bucolismo bíblico. E não somente nas aldeias, mas mesmo nas ruas de Lisboa, hão-de ver-se mulheres a fiar lã e homens agasalhados em peles de animais.
Haverá rebanhos a pastar nos jardins públicos. Os amoladores, os aguadeiros, os ferradores, as lavadeiras e os almocreves, todas essas profissões antigas terão a sua renascença, e a substituir a defunta televisão far-se-ão representações de saltimbancos.
A água dos rios e ribeiros ganhará a limpidez original e, sem cair no ridículo, os poetas de novo poderão compará-la com a clareza dos olhos da mulher amada. Ou vice-versa.
Nas casas brilharão as candeias de azeite e as velas de cera de abelha. Para os transportes recorrer-se-á à segurança pachorrenta do carro de bois. Os soldados e os amanuenses terão, como antigamente, de lutar à mão e de escrever à mão, do que resultará um desânimo ainda mais acentuado para ambas as classes.
As universidades serão encerradas, pondo-se termo a certas profissões como a de médico ou engenheiro, encorajando-se o retorno das mulheres de virtude, dos endireitas e dos ervanários.
A existência do dinheiro será proibida, e a posse de qualquer forma de valores, ouro, prata ou semelhantes, punida com o enforcamento em público. Os cidadãos viverão numa economia de troca, somente aplicável aos artigos de alimentação e vestuário.
As sedes dos bancos serão transformadas em catedrais, e as suas agências em igrejas ou capelas, consoante o tamanho, havendo nelas serviços religiosos permanentes, durante os quais se pedirá ao Altíssimo o regresso dos tempos em que em Portugal havia mouros, bruxas, a peste negra e um pássaro com cara de gente e pés de cabra.

Bem pensado, talvez cinco anos seja um prazo demasiado curto. Suponhamos dez. Durante esse tempo Portugal não custou um centavo, nem fez dívidas. Se não participou no concerto das nações, também não importunou ninguém com pedidos de esmolas e de empréstimos.
O muro a fechar as suas fronteiras e a marinha a isolar as suas costas, a proibição de intercâmbios ou contactos, e a apatia nacional, terão entretanto contribuído para que, finalmente, o país se ache em condições de se tornar um investimento lucrativo para o consórcio que o tiver comprado.
As nações compradoras, eventualmente assistidas pelos organismos internacionais que cuidam da manutenção dos monumentos, poderão fundar um instituto cujo fim será o de organizar excursões ao velho Portugal.
Os autocarros e os comboios não serão autorizados a atravessar o muro, sendo os viajantes transferidos na fronteira para carros de bois que, lentamente, ao som dos chocalhos e das rodas a chiar, os levarão por montes e aldeias, dando-lhes assim uma oportunidade educacional e recreativa única.
A esses turistas não somente será possível confrontar in vivo o passado, como ao mesmo tempo lhes fará entrar no corpo e na alma um medo salutar. Ao fim de cada jornada os guias reunirão os participantes nos adros das igrejas e, no decurso de uma refeição medieval, explicarão as causas que levaram à venda de Portugal.
À noite, deitados sobre faixas de palha, esses cidadãos ressentirão o calafrio que toma os ricos, quando repentinamente enfrentam a pobreza. E certamente regressarão aos seus países mais contentes, mais felizes, mais dóceis.

Resumindo: a obrigação da Europa para com os portugueses é, pois, seguir o exemplo do que fizeram os Estados Unidos com os índios e o Kénia com os animais, e fechar-nos numa reserva. Para benefício comum e para evitar que, deixados a nós próprios, acabemos por desaparecer.
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[i] Publicado em tradução holandesa na revista De Gids, nr 8/9, Amsterdam, Agosto de 1984.
[ii] Communauté Économique Europénne.
[iii] A linha do Sabor foi desactivada em 1988.