quarta-feira, fevereiro 6

Boris, o urso e a "jangada"

As palavras nem sempre bastam para retratar um personagem. No caso de Boris seria preciso juntar-lhes o olfacto e aquele po­der de raios-X com que, por vezes, descobrimos em al­guém uma es­sência que, outrossim, se mostra refractária a ser descrita ou definida.
Filho duma russa e dum comunista basco, que por voltas de 1937 se tinha exilado na União Soviética, Boris na­sceu em Leni­negra­do. São Petersburgo, bem sei, mas ele pró­prio conti­nua a cha­mar-lhe assim.
No tempo em que travá­mos conhe­cimen­to, ha­via anos que desertara do navio onde andava em­barcado, e pos­suía em Rot­terdam um café, um próspero negócio de máquinas de di­versão, e uma rede de relações tão vasta que, no seu dizer, lhe permitia tratar de tudo e com todos, do mais baixo ao mais dis­tinto. Fora isso tinha ganho nome como boxe­ur, era agradá­vel no tra­to e diziam-no correcto em questões de contas.
A razão do per­sisten­te cheiro a fera que o rodeava, só mais tarde e por aca­so, a viria eu a des­cobrir. Mas a essência do seu carácter - indes­critív­el, inde­finível - essa revelava-se sobre­tudo no primei­ro en­contro, ao ver-se surgir aquela cabeça de gigante e tronco con­forme, apoiados so­bre pernas curtas e cambadas. Olhos de aze­viche, irrequietos. Bigode mexicano, de pontas pen­dentes, que lhe da­va um ar de falsa bonomia. Um sorri­so de que não era fácil dis­cernir a qualidade, pois tanto pode­ria ser troça, como es­tupidez ou ameaça. Em geral era ameaça.
Cada vez que me acontecia ir a Rotterdam, criei o hábito de o visitar, fascinado pela extraordinária amálgama de negó­cios que o ocupavam, entre os quais as máquinas de di­versão pareci­am ser uma parte diminuta que ocupava dois apren­dizes numa garagem. O resto era como nos romances: duma casin­hola de madeira no terreno das traseiras da ca­sa, Boris traficava, manipulava, arranjava, alugava, vendia, ria às gar­galhadas dos 'anjinhos' que havia no mundo - en­tre os quais também de bom gosto se incluía - telefona­va, grita­va com a mulher, e bebia litros de chá. Sem anúncio nem cor­te­sias de des­pe­dida, também era capaz de num repente saltar para a car­rin­ha e desaparecer por dias ou semanas.
O seu fraco eram os animais. Mas nada de cães, ga­tos ou bicharada miúda. Só o contentavam os grandes e por isso, no ane­xo que ligava a casa à garagem, tinha construído um verdadeiro jardim zoológico clandestino com jaulas em que eu, com suspresa e alguma preocupação, um dia descobri um leã­o de meio ano, uma hiena, uma onça, jibóias, macacos vários.
À sol­ta, preso a uma cor­rente que qual­quer criança quebraria, deam­bulava o seu favo­rito, um urso cas­tanho que, da primeira vez que o descobri aga­chado a um can­to, quase me matou de susto, porque a min­ha mio­pia o con­fun­dira com um inofensivo monte de trap­os.
Falando-lhe russo, abraçado a ele a ensai­ar passos de dança cada vez que entrava no anexo, Boris espalhava um for­te odor a urso, que só com o tempo e muita simpatia era possí­vel acei­tar.

Fora os animais tinha ainda outra paixão: o equipamento militar. As armas com certeza as guardava em segredo nalgum armazém, porque nunca lhas vi, mas os recantos e dependênci­as da casa eram um verdadeiro empório de tendas, de can­tis, mo­chilas, botas e barretes, uniformes, cinturões, emissores de rádio, tele­fones de campanha, pás e picaretas, ante­nas, holofo­tes...
Dando gargalhadas, Boris gostava de repetir a estória de como a sua mania de acumular coisas mili­tares quase tinha resultado em desastre para a família.
Na sala, único lugar onde o tropeço cabia, e à espera de mais tarde lhe dar destino, tinha ele arru­mado a enorme embala­gem de um salva-vidas de borracha, relíquia proveniente de um destroyer britânico da Segunda Guerra Mundial, e o qual, segundo as in­scrições late­rais, po­dia acomodar doze pesso­as. Outra inscri­ção, sob a pala­vra CAUTION! pintada a vermelho, in­dicava que, puxando a corda, a embar­cação se inflaria dentro de trinta se­gundos.
Com o correr dos anos a “jangada”, como ele lhe chamava, passara a fazer parte da mobília e, quando alguém curioso como eu perguntava o que era aquilo, Boris parecia ter dificuldade em recordar a utilidade do trambolho. Até ao dia em que uma festa de aniversário lhe tinha enchido a sala com familiares.
A certa altura, esvaziadas muitas garrafas de vodka, alguém ti­vera a má ideia de afirmar que, puxando a corda, não acon­teceria nada. Depois de tantos anos o gás há muito que tinha es­capado. Ai não? Queriam apostar? Era só trinta e um de boca?
Uns con­tra, outros a favor, o dinhei­ro começou am­on­toar-se so­bre a mesa. Quando mais ninguém quis apostar, Boris levan­tou-se, deu um esticão à corda. E aco­nteceu!
O barco co­meçou a in­char com extraordinária força, quebrando a mobília, as vidra­ças, a loi­ça, semeando pânico, sufocando as pessoas que, aos gritos, se arrastavam pelo soalho à procura da porta. Até que Boris, en­cont­rando uma navalha, a espetou várias vezes no re­ves­timento de borracha, com a fúria de quem se defende dum mons­tro vivo.
Ao contar a cena não parava de rir, lembrando o em­baraço do cunhado que, por ter borrado as calças, recusava le­van­tar-se do chão.