terça-feira, junho 3

A realidade neerlandesa em forma de sonho (2)

Embora sem que nela me queira exceder, a minha liberdade de escritor permite-me carregar o traço, desenhar em linhas grossas para assim, ampliando a imagem, a tornar visível. E volunta­ria­mente exagero. Mas não minto ao afirmar que tantas vezes ouvi sermões desses que atrás menciono, que a certa altura comecei a preocupar-me por não ter a certeza qual de nós - os meus interlocutores ou eu - sofria da cabeça. Sobretudo se eles, à força de repetições e insistências, tentavam impor-me, não a visão que tinham do meu país - no que lhes cabia o mais pleno direito - mas a obrigação de modificar a minha própria que, não sendo "holande­sa", definitivamente lhes parecia menos válida e politicamente menos correcta.
Na sua opinião Portugal tinha de ser assim, de ser assado, proceder deste modo e do outro, regular isto e aquilo. Se não fosse capaz de fazê-lo eles, que detinham a "verdade" e as receitas mágicas do êxito político e das boas regras sociais, em vez de amanhãs risonhos prenunciavam para o meu país amanhãs chorosos.
Para mim o futuro seria também negro, pois além de surdo às suas exortações eu lhes parecia desinteressado da salvação da minha pátria e do mundo em geral.
A Holanda, essa, não somente a tinham eles salvo e feito progredir, num ciclópico esforço colectivo, mas tornado país-guia, um desses que ao longo da história, desde a Roma da antiguidade, à Rússia do comunismo e à América do capital, mostram o "bom" caminho aos incapazes, aos preguiçosos e aos desfavoreci­dos.
Exortando-me na televisão, na imprensa e em conversas particulares, a tomar a sério as suas fortes convicções sobre os modos de salvar o mundo, os meus interlocutores davam ainda, tanto em geral como em privado, mostras de uma outra curiosa característi­ca: a da franqueza rude. E nada, absolutamente nada, seria capaz de convencê-los que nos mundos mais vastos que existem fora dos limites que vão de Groningen a Maastricht e do Mar do Norte a Venlo, se usa de uma forma de trato social chamada cortesia, a qual, de modo algum é antónimo de sinceridade.
Infelizmente, no que respeitava o contacto humano, a troca de impressões ou ideias, a simples conversa de café, o holandês tendia para a falta de discernimento. Tomava por única e melhor a convicção simplista de que só se é franco quando se é rude. Que a bruteza fomenta a amizade. Que aquele a quem cruamente se apontam os erros, os defeitos, os olhos vesgos, a ignorância, deve esfregar as mãos de contente e dar graças a Deus que pôs no mundo um povo capaz de, sem considerações nem papas na língua, chamar às coisas pelo seu nome.
Da remota década de setenta ficou-me ainda a lembrança de uma Holanda céptica e sombria. Não somente porque, dum e doutro lado do Muro de Berlim, os foguetões aguardassem nas suas rampas de lançamento o comando que faria explodir o mundo num apo­calíptico fogo de artifício, mas porque o prenúncio do pior era hábito secular e generaliza­do. Sobretudo no que dizia respeito à economia e ao bem-estar.
Os bancos abarrotavam de dinheiro, o progresso era em toda a parte visível, o desenvolvimento do país não suportava uma aceleração maior, mas dentro e fora de casa o burguês mantinha o rosto sombrio. Para ele próprio, para o país, o mundo, e até Deus no céu, as coisas iam mal, muito mal, com tendência para piorar.
Os calores do Verão não se comparavam aos de antigamen­te, a neve que caía no Inverno mal cobria os prados, o gelo já não era sólido bastante para que se pudesse patinar nos canais. E os preços constantemente em alta, a qualidade de tudo a diminuir.
Ia-se de férias para o estrangeiro e, em vez de gozar e receber um valor adequado em troco do bom dinheiro que se gastava, era como se hotéis, restaurantes, as esplanadas, os guias e até as mulheres das retretes públicas, tivessem actualiza­do e refinado as técnicas clássicas dos salteadores. Por tudo se tinha de pagar demasiado, raro era o que prestava.
Para cúmulo, hordas de estrangeiros de cores e peles das mais variadas, vindos de nações sem rei nem lei, todos os dias atravessavam as fronteiras e se instalavam com a desordem das suas maneiras, e o bizarro dos seus costumes, nas ruas onde até então se tinha vivido em harmonia, com vizinhos que falavam a mesma língua, que não queriam exageros de culinária e igualmente detestavam o alho.