sábado, setembro 25

Personagem


Está só. Intensamente só num escuro sem alívio. Do marido nunca fala. Os filhos, de quem esperava uma forma de salvação, são-lhe agora peso e cadeia. Acarinha-os, maternal, mas para a mulher que é, vibrante na força, nos desejos e sonhos dos quarenta, são estranhos que lhe roubam o sossego e constantemente a tiram do sonho.
Odeia-se e odeia tudo à sua volta. Odeia em grande a hipocrisia a que se obriga, o mau e mesquinho teatro em que a sua vida se tornou. A vida de que tanto esperava, pois beleza não lhe falta, inteligência tem de sobra, nem vagamente conseguiria imaginar o que são aflições de fim de mês. Em frases sóbrias, quase com secura, analisa o que lhe acontece. Ainda tem perguntas, mas já não se interroga sobre o que valerá a pena, porque sabe que chegou à soleira da desistência e da escuridão. Só. Intensamente só. Palavra nenhuma lhe dará conforto. No amor deixou de acreditar. Amizades não quer. Sabe, sente, que já não é quem era e, alienada de si própria, se vai tornando um rancoroso personagem.