domingo, fevereiro 27

Nobel

A saúde não me preocupa e os fundos permitem-me uma confortável mediania. Ideias ainda vou tendo. Se de vez em quando barafusto contra a falta de tempo é por mau hábito, melhor faria se confessasse a inata desordem de como funciono.
De modo que, sem inimigos perigosos, livre de amizades que exigem excessiva atenção, casa confortável, harmonia familiar, comendo bem e sonos de oito horas, sobram-me razões para mostrar cara de contente.
Infelizmente assim não é. Quando me desprecato, e por coisas miúdas que um espírito sensato desdenharia, tomo um ar furibundo de pai-nobre, arreganho os dentes, torno-me violento, dou murros no tampo da secretária.
Ontem pus a casa em alvoroço, acudiu a família ao ouvir o meu berro e a pancada do livro que atirara contra a janela. Tomo encadernado, com peso para fazer estilhaços se a vidraça não fosse dupla.
"Por apenas este romance o autor merecia o Nobel", afirmou um crítico. Eu, levado na conversa, obriguei-me a lê-lo até ao fim, mas com a overdose de vaidade, pedantice, falta de tino, má carpintaria e ainda pior prosa, ao terminá-lo quase ia tendo uma síncope.