terça-feira, outubro 18

A mulher-a-dias

E é assim que uma amistosa conversa ao jantar desanda em azedume. Somos quatro à mesa. O casal a findar os quarenta, a minha mulher e eu anciãos com um pé na cova. Como é inevitável acabámos por discutir a crise, que a nós não afectará, pois vivemos nos Países Baixos, numa sociedade rica, democrática, com justiça modelar e de excelente organização a todos os níveis.
Eles, porém, têm todas as razões e mais uma de recear o futuro, pois são poucas as garantias de que continuem a manter os ganhos e mordomias que até agora têm desfrutado. Em determinado momento, tentando ele esclarecer os sacrifícios que os esperam, explicou que já tinha dito que talvez a mulher-a-dias passasse a arranjar-lhes a casa três dias em vez dos cinco.
Crente de que falava sem ironia, sugeri que seria mais avisado, e por certo mais económico, seguir o nosso exemplo, pois desde que casámos em 1962 somos nós quem, em equipa, faz os trabalhos domésticos.
Primeiro disse que lhe custava a acreditar. Que não compreendia. Repliquei com algum veneno. Retorquiu ele, com desdém. Na posição que ocupa não se vê a limpar o pó ou a fazer camas. E o cargo da sua senhora "tão-pouco lhe deixa tempo ou disposição para as lides domésticas, que aliás são melhor desempenhadas pelas classes baixas".
Vi vermelho, mas contive-me, afinal estavam em minha casa. Fingi a calma que não sentia e uma sabedoria que não possuo. Expliquei-lhes que na Holanda também há mulheres-a-dias. Emprega-as  quem, por trabalho ou filhos pequenos – não por estatuto social – necessita de ajuda. E são caras. Dez a quinze euros por hora para as ilegais, vinte e oito para as restantes. Em quatro horas fazem os trabalhos pesados, o casal ou a família trata do resto durante a semana. Salvo casos muito excepcionais, a ninguém, mesmo aos ricos, passa pela cabeça ter mulher-a-dias a semana inteira.
Preferi esquecer que um holandês ou holandesa acharia imoral, e um desperdício, estar horas numa esplanada, cinema ou chá das cinco, em vez de lavar a roupa ou sacudir a passadeira.
Ética calvinista? Pois será. Mas abençoada terra de moral, respeito,  justiça e igualdade. Infeliz pátria onde trabalhar ainda é "p'ró preto".