segunda-feira, fevereiro 10

Recordando

 (Clique)

Como se aproxima o aniversário, é bom recordar. Com o título de "Bewust Wording in Portugal"(Tomada de Consciência em Portugal), realizou-se de 16.12.1978 a 28.01.1979,  no Museu Boymans-Van Beuningen, de Rotterdam, uma exposição de fotografias que Arno Hammacher (1927), fotógrafo holandês de renome, tinha feito em Portugal logo depois da Revolução de Abril.
A mim foram encomendadas as legendas das fotografias e, para o catálogo, o texto que segue,  que nessa altura causou algum asco nas massas que já eram politicamente correctas antes de se ter criado a expressão.

Acerca da revolução portuguesa de 25 de Abril de 1974, a leitura dos jornais de há quatro anos deixa-nos hoje a mesma impressão de então: a de uma revolução exemplar.
Exceptuado o número relativamente pequeno dos que, devido a ela, sentiram algum desconforto, ou que, muito temporariamente, se viram privados do gozo de privilégios; postos também de parte os outros, que a idade e o uso do poder tinham amodorrado, e a quem delicadamente se perguntou se um curto e confortável exílio no Brasil não lhes perturbaria os hábitos – tirante isso, pois, o balanço final da revolução só pode ser considerado como vastamente positivo.
Recapitulemos: informados com suficiente antecedência – dado que jamais revolução portuguesa se fez em segredo – os grandes financeiros, os latifundiários, os muito e até os menos poderosos industriais, todos eles puderam pôr a bom recato no estrangeiro o essencial das suas fortunas. O que deixaram, ou era imóvel ou, em consequência dos capitais retirados, estava destinado à falência.
Os dois ou três milhares de agentes da PIDE, pilar fundamental do regime fascista, e que a si próprios se encarceraram para poderem escapar à cólera do povo, foram depois, ou julgados sem culpa, ou gentilmente ajudados a escapar das prisões, não um de cada vez, mas às centenas.
As Forças Armadas, que durante mais de uma dezena de anos tinham lutado contra os movimentos de libertação de Angola, da Guiné e de Moçambique, resgataram essa mácula ao tornarem-se o braço de uma revolução sem precedente histórico: a de um exército de um regime fascista que restaura no seu país as liberdades democráticas.
E desse modo, sem violência nem sangue – que são dois ou três mortos em semelhante ocasião? – a revolução portuguesa foi, durante cerca de ano e meio, a criança mimada e gasalhada da opinião pública mundial. Apontaram-na como exemplo aos revolucionários barbudos e sanguinários da América Latina; desenvolveu-se a teoria de que os cravos eram provavelmente mais eficazes e menos barulhentos que as metralhadoras. Ainda se encontravam entreabertas as fronteiras, e já de todo o mundo acorriam a Lisboa os turistas revolucionários, certos e seguros que semelhante ocasião não era de perder; verdadeira benesse, a possibilidade de, sem perigo de arriscar a pele, tomar parte na folclórica agitação que se seguiu: pequenos golpes, meios golpes, contra golpes, as spinoladas, a balbúrdia dos regimentos descontentes.
Anotando, fotografando, filmando, eles sentiram o delicioso calafrio de, aqui e além, assistirem ao nascimento de um embrião de soviete: soldados, camponeses e operários um momento irmanados.       
Correram ao Alentejo, desesperados de que a ocupação das terras não fosse imediata e total. A tinta vermelha escasseou no mercado. Sociólogos, peritos da política, jornalistas e historiadores, sentado no conforto de Amsterdam, Copenhagen, Hamburgo, Uppsala, pegaram em réguas e dividiram o pobre e desconhecido país em duas grandes zonas nitidamente cortadas pelo Tejo: a norte, uma miserável plebe conservadora, supersticiosa, analfabeta, sofrendo a canga do clero e dos caciques; a sul, o extenso Alentejo liberto do jugo capitalista, e onde as papoilas, as canções vitoriosas e o entusiasmo dos "campesinos" anunciavam um formidável amanhã.
A Lisboa tinham regressado venerandas figuras de oponentes, e outras, menos venerandas, ainda ágeis e habilidosas, dispostas a não deixar perder migalha do bolo que, infalivelmente, seria repartido.
Condição mais ou menos essencial era 'rótulo de "desde sempre grande lutador antifascista. Ora se neste mundo há coisa que se cole sem dificuldade, a etiqueta política leva a palma ao selo do correio, e para ambos basta a própria língua.
Misturados aos verdadeiros exilados, ou escondidos pela sombra dos que, como muitos comunistas, tinham sofrido dezenas de anos de prisão, todo um cortejo começou a passar e a repassar pelas antecâmaras, pelos ministérios, pelos bancos e jornais nacionalizados, pelas empresas que o Estado retomara, gritando as próprias virtudes, manobrando sem descanso até alcançar o nicho, a fatia ou a migalha desejada.
Os militares, que tinham sido o braço executor, e a quem durante algum tempo se deixou a ilusão de que eram os verdadeiros detentores do poder e da legalidade democrática, não tardaram a ser ultrapassados pelos que, mais sabedores da política, e mais ao corrente do equilíbrio das grandes potências internacionais, apenas aguardavam a passagem daquela febre que sabiam passageira.
No meio de tudo isto, atónita e de boa-fé, a grande massa popular deu largas ao seu entusiasmo no dia da revolução e, no 1o de Maio que se seguiu, voltou à rua num espontâneo, grande, caloroso movimento de alegria, esperançada de que as promessas seriam cumpridas, de que as palavras eram sentidas, de que para a felicidade e o progresso bastava a liberdade que lhe prometiam os novos líderes.
A demagogia não é um exclusivo dos políticos portugueses e, infelizmente,  por razões e medos bem compreensíveis, a memória do povo é curta.  A promessa de que a democracia e a liberdade resolveriam tudo', e de que o país se encontrava "em marcha para o socialismo em liberdade", iguala em pouca vergonha a que já lhe faziam no princípio do século os agitadores republicanos, ao afirmarem que a solução dos problemas do país, que então, como hoje, se encontrava às portas da bancarrota, dependia de "matar o rei e pôr o bacalhau a pataco."
Esse raciocínio, longe de ser inocente nas suas intenções, teve como resultado uma república parlamentar que, em dezasseis anos de existência, conheceu sete eleições gerais, oito presidentes da República e quarenta e cinco governos, durando cada um destes a média de quatro meses. Não é, pois, de estranhar, que a chegada de Salazar ao pode, no início dos anos 30, tenha dado a muitos um sincero sentimento de alívio.
A legalidade e a necessidade de um regime democrático em Portugal não são aqui ponto de discussão, e nada poderá justificar o retorno a um odioso passado. Mas só um tolo ou um indiferente poderão ficar insensíveis perante a situação de um país onde a palavra crise, perdendo o seu significado político de agravamento de uma situação, passou a ter o significado que se lhe dá nas peças de teatro, quando a intriga se intensifica, levando a acção dramática a uma catástrofe.
Que dizer de um regime democrático que, à semelhança do seu antecessor republicano, é um modelo de incompetência, de incapacidade, de amadorismo, e que em cinquenta e três meses de existência conhece dez governos?
Que simpatia se pode ter por governantes para quem o nepotismo, a venda pura e simples de favores e protecções, os negócios escuros, o contrabando, a corrupção, o interesse pessoal e familiar têm primazia sobre o interesse público? Como desculpar os estadistas que tornaram Portugal um país onde de novo há miséria e fome?
Que fizeram eles das grandes reservas monetárias que mantinham o escudo uma moeda forte?
Como explicarão a vergonhosa tragédia de que em Lisboa, com 20% da população portuguesa, um terço das pessoas habite em partes de casa ou bairros de lata, e cerca de 200.000 vivam em quartos alugados?
Os dirigentes fascistas não tinham que dar satisfações: governavam pela força, e a revolta era o corolário inevitável. Mas a todos estes homens, eleitos, escolhidos, designados segundo as regras do sistema democrático e parlamentar, que se dizem e querem defensores íntegros dos princípios da democracia, não é somente necessário pedir-lhes contas: é imperativo que as prestem. É urgente que o povo os julgue antes que seja tarde, antes que se torne real o fantasma do governo autoritário com que eles nos ameaçam, como se a nós, lesados, ainda nos coubesse castigo.
No contexto sociopolítico português dos anos recentes, sobressai um certo número de factores cuja importância nem sempre é tomada em consideração, ou aos quais, pelo jogo dos interesses imediatos, é dada a interpretação que melhor serve dos ditos interesses.
Se nos limitamos ao período compreendido entre a guerra colonial, no início da década de 60, e a actualidade, o mais saliente desses factores é o fenómeno emigratório.
Velha constante da sociedade portuguesa, a emigração das duas últimas décadas  tomou as proporções trágicas de uma diáspora. Os emigrantes são é menos impressionante pelo número, que ultrapassa os milhões, do que pelas terríveis e imponderáveis consequências que a sua partida acarreta para a pátria.
Em primeiro lugar são eles, fora de dúvida, o grupo mais dinâmico da população. Se é verdade que para alguns, por exemplo os desertores, a emigração foi uma opção principalmente política, para a grande massa o movimento de fuga foi causado pelo mais primitivo dos medos, o da fome, e a vontade de um futuro menos miserável. Não partiram como os emigrantes holandeses após a Segunda Guerra Mundial, trocando um relativo conforto e segurança, pela perspectiva do enriquecimento. Os portugueses não fugiram para enriquecer, mas para se assegurarem uma sobrevivência.
Porém, sem eles, o país reduz-se a um depósito de mão-de-obra barata e disponível. O seu trabalho serve para enriquecer outros, e o seu retorno apenas tornaria mais agudos os problemas existentes. E, tal como acontecia na última década, as elevadas somas de dinheiro que os emigrantes remetem, e que pagava então os custos da guerra colonial, é hoje uma das imprescindíveis e escassas fontes de receita de que dispõe o tesouro público.
Daí resulta um dilema: sem homens dinâmicos o país não pode prosperar, e sem o dinheiro que os emigrantes lhe mandam, o país não tem com viver.
Outro factor necessário para a compreensão da realidade portuguesa actual é conhecer a composição da classe dirigente. É um facto indiscutível que o regime salazarista, com a repressão policial, a Censura e o apoio da Igreja, logo criou uma Oposição,
A verdadeira revolta, co  as suas trágicas consequências, os assassinatos, as torturas, as prisões, a vida clandestina, conheceram-na desde o início da ditadura os marinheiros, os operários da zona industrial de Lisboa, do Barreiro, da Marinha Grande, e os camponeses do Alentejo. O resto do povo vivia entre o medo e a miséria, o que bastava para amordaçá-lo.
Uma parte da burguesia, menos enfeudada ao regime, limitou-se, por sua vez, a uma oposição académica e bem educada, esperando pelo fim dos anos 60 para lhe dar um carácter aberto, mas mesmo assim esporádico. Os poucos homens que nela tomaram parte distinguiram-se mais a título pessoal, de como membros das várias e divididas correntes da Oposição, a qual parecia mais interessada na discussão de minúcias ideológicas, do que no verdadeiro e urgente combate antifascista.
Por sua vez, os partidos políticos, com excepção do Partido Comunista, fundado em 1921, datam todos do período posterior à revolução de 25 de Abril de 1974. O facto do Partido Socialista ter sido fundado na Alemanha em Abril de 1973, quando a iminência da queda do regime era previsível, assemelha-se mais a um oportunismo político, do que à união de indivíduos que partilham uma convicção e se preparam para a luta.
De modo que, mau grado as aparências, o que aconteceu em Lisboa a 25 de Abril de 1974, não foi exactamente uma revolução, mas um mudar de personagens.
Semelhante raciocínio pode parecer absurdo, e até contraditório da realidade evidente, indo também de encontro à imagem pura e idealista da revolução dos cravos. Todavia, se ela foi pura e cheia de ideais para alguns que a fizeram, resta provar que tenha sido pura e desinteressada para muitos que a usaram como escada que leva ao poder e à opressão.
Detenhamo-nos um instante para uma breve revista dos acontecimentos. O regime que Caetano herdara de Salazar continha em si todos os germes da putrefacção. O seu fim era, simplesmente, uma questão de tempo e oportunidade. A guerra colonial, além de isolar o país internacionalmente, limitava-lhe os escassos mercados de que dispunha, concorrendo para que os capitalistas, os industriais e os comerciantes mais importantes se desinteressassem da problemática do regime, o qual, com teimosia senil, recusava dar-se conta da realidade.
Enquanto se precaviam contra todas as eventualidades e punham a seguro a parte mais importante dos seus haveres, esses homens de negócio jogaram, em muitos casos, a carta do futuro, o que equivalia a manter boas, e mesmo íntimas, relações com os oficiais que viriam a ser revolucionários, concedendo-lhes certas facilidades indispensáveis, abrindo aos capitães certas portas que doutro modo permaneceriam fechadas.
Ao mesmo tempo, a diminuição dos investimentos nacionais e estrangeiros, acompanhada da crise económica internacional de 1973, contribuíam para acelerar o desenlace.
Além de tudo isso, ao clima de insatisfação geral, habilmente utilizado pelas forças de esquerda, veio juntar-se um elemento acidental: o do descontentamento de certos oficiais, que viam as suas prerrogativas e possibilidades de promoção ameaçadas por um inábil decreto do governo. É inegável que houve uma tomada de consciência política por parte de alguns dos militares que combatiam em África, e a actuação do Partido Comunista pode considerar-se como tendo sido determinante na desmoralização dos soldados, incitando-os a desertar, e enfraquecendo assim a luta contra os movimentos de libertação.
Contudo, a leitura da imprensa, dos documentos e das obras publicadas desde a revolução, põe sobretudo em relevo, além dum carácter suspeitamente improvisado, um certo número de incógnitas que nenhum dos seus participantes pareceu, até agora, interessado ou apressado em esclarecer. Apontem-se apenas alguns:
- Como foi possível que as acções e reuniões dos capitães que preparavam a revolução, escapassem à vigilância da PIDE, uma polícia reputada pela sua temível eficácia, e a qual, além dos agentes regulares, contava a todos os níveis da sociedade uma rede de informadores que excedia 200.000?
- Que cumplicidades e silêncios foram comprados com essa falta de zelo?
- Quem detém, e para que chantagens políticas são utilizados, os arquivos da PIDE, os quais continham mais de 3 milhões de fichas com informações sobre outros tantos cidadãos?
- Um dos maiores consórcios ibéricos, a Companhia União Fabril, adquiriu em Janeiro de 1973 a editora Arcádia, a qual, no mês seguinte, publicava Portugal e o Futuro, o livro do general Spínola. Quem indigitou Spínola, um fascista notório, para encabeçar o movimento revolucionário, permitindo-lhe tornar-se depois presidente da República?
- Porquê, e por quem, foi o governo português ameaçado de grandes consequências, caso Marcelo Caetano e o presidente Tomás não fossem mandados para o Brasil, em paz e sem julgamento?
- Que equilíbrios internacionais, políticos e económicos, obstam a uma verdadeira revolução democrática em Portugal?
- Como justificar a posição preponderante que continuam a ocupar no aparelho do Estado, e nos sucessivos governos, os mesmos homens que serviam o regime anterior?
- Como não rir do facto que a quase totalidade do corpo diplomático, que hoje tão calorosamente representa o regime democrático, seja composta pelos mesmos indivíduos que, delatando e informando, fiel e eficazmente representaram e mantiveram o fascismo?
- Entre os capitães revolucionários, alguns tornaram-se generais domesticados, cobertos de honrarias e medalhas, abonados nos ganhos. Outros foram presos, humilhados, desaparecendo no anonimato. Se a revolução, como Saturno, devora os próprios filhos, que razões levaram esta a ser tão generosa com os primeiros?
- Que interesses - para além da incapacidade dos governantes – obrigam Portugal a viver de empréstimos bancários que não pode pagar, coartando-lhe a independência, tornando-o em relação aos seus credores menos que uma colónia, um país vassalo?
A estas e outras incógnitas, os historiadores e os especialistas saberão responder com os argumentos astuciosos da razão de Estado; com as dificuldades que surgem cada vez que se quer escrever a História do imediato; com o perigo que existe em agitar o que está quieto.
Mas a quietude é apenas aparente, pois a miséria nunca foi boa conselheira. E à miséria acrescenta-se a provocação ignóbil do luxo duns quantos, os que se souberam arranjar. Os novos senhores, como os senhores do passado, mandam fazer nos jornais estendal das suas festas, dos seus jantares, dos seus vestidos, do carnaval em que vivem.
Por isso, e mais fundo do que magoa a fome, o frio, a humilhação doem ao povo as esperanças perdidas, as promessas com que o enganaram, o futuro que lhe recusam.

A classe que depois da revolução de 74 passou a dirigir Portugal, não difere da que o dirigia antes. As cumplicidades, os laços familiares, as protecções, os compromissos, os encobrimentos mútuos, apenas repetem os que já existiam.
Os seus membros manipulam habilmente o idealismo de alguns, o entusiasmo de muitos e a esperança da maioria, saíram para a rua e correram mundo, agitando cravos, slogans, gritando que tinham feito uma revolução exemplar: sem sangue, restaurando as liberdades, capaz de irmanar os desirmanados, de repartir os latifúndios, de eliminar a miséria.
Foram bem poucos os que puderam, ou quiseram, ver de imediato que a mudança só tinha sido possível com a cooperação e o apoio daqueles que, desse modo, criavam a possibilidade de manterem o poder.
Democratas eles? Não. Seja qual for o disfarce com que se apresentarem, o credo que disserem seguir, a sua mentalidade e os seus verdadeiros intuitos são os dos opressores. Opressores são também todos quantos os apoiam, os desculpam, lhes possibilitam o governar e, impunemente, o comportarem-se como uma quadrilha.
As revoluções "exemplares" entram nos calendários da História com os seus heróis, os seus santos, as suas datas de aniversário, as bandeiras e os foguetes.
A revolução invisível, a verdadeira, nasce dentro de cada um de nós, cresce e passa como força irreprimível para a alma dum povo, causando as transformações que são os passos em frente a caminho de um país mais justo.


*  *  *