domingo, fevereiro 2

Remexendo nas gavetas (34)

(Clique)

Depois do Neo-Realismo
Do Time Magazine, 30 de Abril, 1984:


"Dez anos depois da Revolução dos Cravos, a mera sobrevivência tem-se tornado de facto uma luta diária para milhares de trabalhadores portugueses… 150.000 trabalhadores das zonas industriais de Lisboa, Setúbal, Porto e Braga, desde há 14 meses não recebem salários, porque os patrões, tantos particulares como estatais, não desejam ou não lhes podem pagar. Os trabalhadores continuam a fazer os turnos de trabalho, pois correm o risco de serem despedidos se se ausentarem durante cinco dias consecutivos… As bandeiras vermelhas da revolução foram substituídas pelas bandeiras negras, símbolo da fome… Fora as crianças e os velhos que se vêem a remexer nos caixotes do lixo, a pobreza esconde-se, tal um vergonhoso segredo… Os artigos de contrabando são vendidos com margens de lucro que atingem os 400%... O Cardeal Ribeiro chamou a atenção para o que diz ser 'a preocupante coexistência entre a fome e os sinais de opulência, o desperdício e a indiferença.' Soares continua decididamente optimista, estando convencido de que Portugal, a caminho de uma dolorosa entrada na CEE daqui a dois anos, sofrerá um choque económico que ele considera eminentemente salutar."



Do Jornal de Letras, 23 de Abril, 1984



"Os escritórios dos escritores, reinos soltos entre o café e o comboio… Deles sabemos-lhes as palavras, espiolhamos-lhes as capas nos escaparates das livrarias, saboreamo-los preguiçosamente no nosso cadeirão favorito...O escritor F. despreza dicionários: 'A língua que utilizamos tem de estar consubstanciada connosco. Quero que o vocabulário seja expressivo em valores emocionais, preocupo-me com a rítmica das frases.' O escritor S.: 'Almoço para escrever e janto depois de escrever. Tenho sempre um fundo de música dos séculos XVII e XVIII… Uso uns caderninhos de capa preta luzidia (já não é muito fácil descobri-los, mas eu encontro-os).'…O escritor G.: 'Escrevo tudo à mão em caderninhos… Nos cafés vou fumando e bebendo cafés. À noite bebendo água gelada e fumando…  O ideal é fecharmo-nos em casa e mergulharmos na ficção.'… O escritor B. escreve na sala de jantar, de madrugada: 'Escrever ficção é uma forma de me fazer e refazer.' O escritor T. não dispensa o cigarrinho cúmplice: 'Corto imediatamente a bebida que me distrai a memória vocabular de que preciso, porque utilizo muito o substantivo adjectivante.'…

"A casa, musa-mãe da nova escrita portuguesa, sem distinção de sexos. Os cromossomas aparecerão em pequenos pormenores: o horror à cozinha, a bonequinha de pano. A escritora H. abre-nos a porta em calças de ganga e sapatos de ténis, e explica timidamente: 'A casa está mobilada com coisas soltas que fomos arranjando, não é aquela casa assim decoradinha, não é…''  Nas peças díspares há uma estranha harmonia que rescende às aldeias dos seus livros…' A escritora L. : 'O ritual mais importante é fechar a porta da cozinha, isso sim!...' Em cima da secretária a máquina onde as folhas jorradas a lápis se desnudam de pudores."