quarta-feira, março 12

Tormentas

(Clique)
"- Sabe que mais? – gritava ela, rouca, fora de si. – Deixe-me em paz! Vá curar a bebedeira pra outro lado! Chame o tio e metam-se os dois na cama, como de costume. O velho não vê, nem se importa, grandessíssima puta!
Num gesto alucinado quis bater com o receptor no descanso, mas ao falhar a pontaria escavacou-o contra o rebordo da mesinha de cabeceira.
O choque pareceu trazê-la à realidade. Perplexa, seguia com os olhos o telefone que, tendo saltado da peça quebrada, pendulava seguro pelos fios, tornando irreal e incoerente o berreiro da mãe.
Levantei-me para desligá-lo da tomada, e depois, sem palavras, porque nenhuma a confortaria, tomei-a nos braços, a fingir que não ouvia os soluços, ignorando as lágrimas, a acariciá-la para que esquecesse. Até que acalmou e adormeceu.
Mais do que doutras vezes tive inveja do sono que só se dorme na juventude e, durante horas, fiquei acordado, de costas, ela a pesar-me no braço. Surpreso  de compreender a mãe e lastimá-la, pois embora discordasse do aparato com que tinha sonhado e, a seguir, a família junta numa grande comezaina, festa, convidados, presentes, música, bebida à farta, reconciliações e beijos, também eu, no íntimo, desejara outro dia. Confusamente seguro de que a mulher adormecida junto de mim, ou a rapariga, talvez a criança que ela ainda era, jamais partilharia comigo as harmonias por que eu ansiava.
De facto, pouco nos unia – a insónia escalpela sem piedade as ilusões – e o que eu sabia dela, ou ela de mim, não eram mais do que aparências, um verniz que resistia às confidências, a fronteira onde paravam os impulsos e a ternura.
Tínhamos sinceramente apalavrado o casamento, como se o sim, o selo, tivesse mágica suficiente para derrubar muros. Não somente os nossos, mas os que vinham de trás, levantados por outros. Dizendo-me eu que bastaria querer, esperar, dar tempo, e a felicidade deixaria de ser o lampejo que por vezes entrevíamos, para se tornar duradoura.
Todavia, na realidade da noite tudo isso aparecia remoto, desfocado, inconsistente, agravado pelas ironias que o destino trama.
Julgando preparar o futuro, eu apenas mudava de cadeias. Nunca mais me poderia esconder de mim próprio sem a certeza, o remorso, de que conscientemente a deixava de fora.
A protegê-la? Não. A poupar-me. Para Martha o meu passado permaneceria a incógnita que era, e o meu Chaco um país onde as suas razões não tinham entrada."
 * * *
In "A Sétima Onda".