domingo, setembro 10

O fim da fita


TEMPO CONTADO

(06-01-2007    10-09-2017)
fecha hoje definitivamente. O autor fica grato aos que o leram e seguiram.
 

segunda-feira, setembro 4

As mentiras dos outros

(Clique)


Em todas as amizades, mesmo nas boas e antigas, ocorrem por vezes momentos em que uma observação inesperada ou uma ideia que fere a sensibilidade resultam em frieza, e se não nos acautelamos começa aí a brecha por onde entra o fingimento.
Connosco raramente é esse o caso, pois pela diferença de idade e o facto de o conhecer desde miúdo, desempenho para ele o papel do pai que lhe faltou, e nas  ocasiões mais delicadas o de benévolo padre confessor, pronto a compreender e  perdoar.
As tontarias eram de pouca dura, só uma ou outra durava meses, ele logo a esfalfar-se na conquista seguinte, certo de que desta vez seria finalmente o grande amor. Nunca era. A mulher ia aguentando, fingia de cega, mas quando recebeu a herança da madrinha no mesmo dia fez-lhe a mala, e que voltasse para donde vinha, depois lhe diria quando podia levar o resto.
Foi isso vai em seis anos, e desde então nem vistos nem conhecidos, nunca mais se falaram. Os filhos também não são o que se chama uma ponte, de modo que  os laços familiares se tornaram tão frouxos que hesita na idade dos netos, só tem a certeza de que são crescidos.
Estamos a terminar o almoço para que ele me convidou, a empregada traz-nos o café, recuso o conhaque, e com alguma surpresa vejo-o a beber o seu com uma pressa de alcoólico, vício que lhe desconheço.
Seca os lábios no guardanapo, abana umas quantas vezes a cabeça, depois ainda aponta o copo, a pedir um segundo, mas arrepende-se e acena que não, a empregada sorri.
- Então?- pergunto eu – Qual é o problema?
À medida que vai desfiando o relato noto nele uma certa decepção, talvez porque esperasse ver-me mais interessado e mais do seu lado, em vez do modo neutro com que disfarço a minha surpresa.
Acontece que Luísa, a ex, que ele nem de longe imaginava fosse dada às letras, tinha  escrito as suas memórias. A obra terminada, pedira ao filho que lesse o manuscrito e este, assustado, achou melhor mostrá-lo ao pai antes do texto ir para o editor. Conta ele agora que leu, tomado de uma fúria assassina e mal se  podendo conter ao ver-se ali retratado.
Como não adianta rasgar as folhas -  “a grandessíssima p… tem tudo no computador” - que lhe diga agora o que há-de fazer. E corrigindo: que faria eu se fosse comigo?
- Não fazia nada. Deixava andar.
- Mas ela só lá pôs mentiras!
- E daí?
Ontem mandou-me um mail com o endereço do seu blogue e um grito: "Pus lá tudo! Vá ler!"
Não vou, não me interessa. Ele também só lá deve ter posto mentiras. As suas.
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Publicado na DOMINGO CM

segunda-feira, agosto 28

Aeroportos, estações e urgências

(Clique)
É um fascínio que nasceu no começo da tarde de um domingo dos meus longínquos dezanove anos, em que, jovem miliciano, aborrecido e triste de me ver obrigado a uma existência que me desagradava, me deixei ficar a uma janela do Quartel da Graça, olhando lá do alto para a cidade, ciente de que de imediato trocaria a minha vida por qualquer uma das que enchiam as ruas, pois de certeza haveria nela mais esperança e razões de optimismo do que na que eu levava.
Foi então que, achando-me sombrio, o Barros, alfacinha de gema, vizinho de camarata e depois amigo para a vida, sugeriu que em vez de estar ali a assombrar-me, esquecesse a tropa e fosse com ele. Apanhávamos o autocarro,  íamos à Portela ver os aviões, ver quem lá estava, e beber uma cerveja.
Surpreendeu-me o edifício, encimado por uma pequena torre de controle e, dada uma vista de olhos à pista e ao único avião que ia levantar voo e me pareceu gigantesco, sentámo-nos na varanda do bar, onde entre sujeitos engravatados, senhoras de chapéu e meninas muito compostas, estariam talvez cem  pessoas, atendidas por um pessoal exemplar na sua postura e deferência.
Admirando aquilo tudo, e com a sensação de ter descoberto um mundo, foi-se-me a melancolia.
Não é só por essa recordação antiga, mas de facto gosto de aeroportos, e quanto maiores melhor. De Gaulle, Atlanta, Dubai, Frankfurt, Schiphol, Heathrow, neles não me interessam os aviões, sim a massa de gente, e nessa massa o grupo que se movimenta com os ademanes de quem não está ali somente para viajar, mas parecendo tomar parte numa misteriosa telenovela. Ele são os óculos escuros, o traje, os acessórios, o ar entediado, o modo desprendido de empurrar o carrinho, de rir para o telemóvel. Gosto mesmo. Tivesse eu tempo, ocasião, e não corresse o risco das autoridades me tomarem por importuno ou vadio, passaria o tempo nos aeroportos, certo de que me viria daí mais proveito do que andar pelas ruas em busca de assunto para as minhas histórias. Tanto mais que esse povo é muito diferente da multidão bisonha que se arrasta pelas estações à espera do comboio.
Agora devo talvez desculpar-me para confessar que, além dos aeroportos, também sinto atracção pelas urgências dos hospitais. Mas lá não é a pose, são os rostos que me fascinam. Defronte daquelas expressões de medo e sofrimento, concluo as mais vezes – erradamente, bem sei – que a humanidade é boa e pronta a arrepender-se. Pena que o arrependimento seja sempre de pouca dura.
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Publicado na DOMINGO CM